A guerra de liminares entre as empresas de energia elétrica já coloca em xeque o fechamento de contas no mercado de curto prazo. A Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) registrou uma inadimplência recorde de 47,25%, ou R$ 1,4 bilhão, na liquidação financeira de junho, fechada ontem. Para especialistas, a situação reforça a urgência de um acordo do governo com o mercado para interromper a judicialização, e aliviar os problemas do mecanismo, que permite o ajuste da energia que foi gerada e consumida entre os iversos agentes.
Ao todo, a liquidação somou R$ 2,99 bilhão, dos quais apenas R$ 1,55 bilhão foram pagos. Segundo a CCEE, do valor não honrado, 63%, ou R$ 891 milhões referem-se a empresas que estão protegidas por liminares. Na prática, elas não são consideradas inadimplentes e não sofrem sanções. Os R$ 522 milhões restantes referem-se ao calote de fato, que ficou em 17,5% do total e pode ser cobrado judicialmente. Na liquidação de maio, fechada no mês passado, a inadimplência total já tinha somado 20%.
O patamar em aberto na liquidação de ontem só ocorreu em 2010, quando problemas pontuais com a União Comercializadora levaram a um calote de cerca de 47%. Desta vez, no entanto, o problema é mais complexo, pois envolve diversos atores. De acordo com a CCEE, foram registradas 44 liminares, das quais 38 referem-se à questão do déficit de geração hídrica. O termo refere-se à energia que foi gerada abaixo do previsto em contrato pelas hidrelétricas, em meio à seca e a decisão do governo de despachar mais térmicas para permitir a recomposição dos reservatórios. Para suprir o déficit, as companhias precisam recorrer ao mercado de curto prazo, a preços elevados.
Essa diferença, que costuma ser irrisória em condições climáticas normais, chegou ao patamar de 20% neste ano, gerando despesas estimadas em mais de R$ 20 bilhões. Diante disso, diversas geradoras conseguiram liminares na Justiça limitando seu risco a apenas 5%. Em uma segunda leva de judicialização, as geradoras que não tinham liminares limitando o risco conseguiram decisões judiciais que as protegem do rateio adicional. Na terça-feira, foi a vez de as distribuidoras livrarem-se da conta na Justiça. Ou seja, na prática, com a guerra judicial, existe uma conta que ninguém está obrigado pagar.
O governo está ciente do problema e apresentou uma proposta às geradoras há duas semanas para livrá-las do risco hidrológico, pedindo como contrapartida a suspensão das liminares. A ideia agradou e as negociações estão avançando, mas as geradoras querem uma metodologia mais fechada para se certificar do quanto vão receber, para só então, abrir mão do amparo da Justiça.
De acordo com especialistas, o governo precisa correr para encontrar uma solução. O risco é que a judicialização se espalhe além dos geradores, o que, na prática, tornaria muito mais difícil uma negociação para fechar as contas.
Quando os “devedores de energia” não honram seus contratos há um corte proporcional no valor a receber para os credores, que não incluem apenas as hidrelétricas e distribuidoras, mas também os consumidores livres, que incluem indústrias e shopping centers que têm contratos diretos com as usinas. “Com mais gente afetada e sem uma solução, o risco de judicialização só cresce”, afirma Raphael Gomes, sócio do Demarest Advogados responsável pela área de energia.
O presidente da CCEE, Rui Altieri, acredita que o governo está próximo de fechar um acordo com as geradoras e não há motivo para alarme. “A Aneel e o ministério [de Energia] estão discutindo em alto nível. O problema vai ser resolvido de forma isonômica e estamos próximos de uma solução para a questão”, ressaltou. Ele não informou quais outras empresas tem liminares para além do déficit hídrico, mas garantiu que elas representam valores “bastante relevantes”.
O consórcio responsável pela construção da usina de Santo Antônio já informou que conseguiu uma decisão judicial que a livra das despesas pelo não atingimento do fator de disponibilidade das turbinas, que têm que estar disponíveis 99,5% do tempo. A empresa depositou apenas R$ 98,3 milhões, que é o que julga ter a pagar, enquanto a CCEE contabilizou despesa de R$ 447 milhões.
A usina de Jirau, também no Rio Madeira, é outra com divergências com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) sobre os valores devidos na liquidação, por conta de liminar que lhe confere excludente de responsabilidade pelos atrasos na obra.
Diante do amplo leque de questões judicializadas, o desafio é o maior enfrentado pelo governo desde 2002, quando houve um acordo geral entre agentes após o racionamento, diz um empresário do setor. “Agora, os problemas são mais diversos e os interesses, conflitantes. Fica mais difícil chegar a uma solução que contemple todas as partes”, avalia.